Há tempos, escrevi um texto intitulado Sexo Não É Intimidade. O título ainda é válido, porém, preciso fazer um adendo nesta história: o sexo não é intimidade hoje, em nosso mundo horizontal. Mas que diabos é o mundo horizontal? Primeiro, deixe-me dar-lhe um panorama do mundo vertical. O mundo vertical era o mundo antigo — mais ou menos 60 anos atrás. Este mundo era carregado de ordem e hierarquias. Tínhamos um norte a ser seguido, sabíamos qual religião acreditar, qual carreira se especializar, com quem poderíamos casar, qual passo que deveríamos dar; havia papeis definidos para homens e mulheres; havia a distinção entre melhor e pior, entre bem e mal, entre feio e belo e etc. Neste mundo, o indivíduo não tinha muitas opções. Partindo de uma visão otimista e simplista, o indivíduo, por ter menos opções disponíveis diante dele, era menos acometido pela angústia e pela ansiedade. Por outro lado, ele sofria repressões de todos os lados, principalmente se tratando da sexualidade. O sexo não era livre e escancarado como hoje; o desejo era escondido e, em grande parte, um tabu. A regra era: sexo somente depois do casamento. A mulher era obrigada a casar com o homem que sua família escolhera e a homossexualidade era vista como doença por grande parte da sociedade.
As coisas mudaram. Hoje vivemos em um mundo horizontalizado, ou seja, um mundo sem norte definido e repleto de relativismos de todos os lados. Podemos ser o que quisermos, tanto profissionalmente quanto pessoalmente. As distinções entre melhor e pior, entre bem e mal, entre belo e feio tornaram-se nebulosas. Neste mundo, o indivíduo tem à sua disposição milhares de opções em todas as nuances de sua vida, inclusive se tratando da sexualidade. O lado bom neste mundo horizontal, é sermos mais livres para escolher. Mas e agora, o que eu faço com essa liberdade? Ao mesmo tempo que sou mais livre para escolher entre milhares de opções, também passo a ser mais acometido por angústias e ansiedades. A tecnologia impulsionou todo este processo horizontal.
Perceba que ambos os mundos têm coisas boas e ruins. Segundo o psicanalista Jorge Forbes — o qual é responsável pela apresentação destes dois mundos —, sua visão perante a horizontalidade de nossa civilização, é otimista, basta a nós nos adequarmos a ela. Particularmente, não sou tão otimista assim, principalmente no campo sexual. E é aqui que quero aprofundar-me. Após a década de 60, houve uma mudança considerável na interação sexual entre homens e mulheres, e isso ocorreu principalmente pelo fato da descoberta da pílula contraceptiva. Agora seria possível transar com um risco mínimo de gerar um filho. Este fato impulsionou a nossa liberdade sexual, sobretudo, a liberdade da mulher. Antes disso, grande parte das pessoas obrigavam-se a se conter diante do desejo sexual. Ninguém queria filhos indesejados. Além do mais, toda a cultura da época aderia fortemente a essa ideia da repressão da libido, impulsionada, principalmente, pela religião cristã e todas as suas vertentes.
Bem, isso tinha um motivo claríssimo: frear a natureza humana. Ora, mas por que freá-la? O que de ruim poderia acontecer? Filhos indesejados, propagação de doenças venéreas e a morte da intimidade. Todas estas mazelas cresceram consideravelmente após os anos sessenta. Isto atingiu em cheio as famílias. O HIV, um vírus astuto que fora descoberto nos anos oitenta, aproveitou-se de nossa promiscuidade; as milhares de crianças que tiveram que crescer sem os pais e sem uma família estruturada também aumentaram após os anos sessenta; e o sexo foi separando-se da intimidade, até chegarmos ao ponto de nos relacionarmos com o sexo oposto como um cardápio de um restaurante, onde eu o abro e escolho o que vou degustar.
Além disso, a liberdade sexual nos levou a uma liberdade moral. O uso excessivo de drogas — principalmente o álcool — normalizou-se entre os jovens. Não é incomum encontrar alguém que foi a uma festa, bebeu até entorpecer-se e então acordara com um estranho ao seu lado. Grande parte das pessoas que são abusadas sexualmente, estão sob efeito de drogas. O mesmo acontece com os agressores. Esta é uma conversa que precisamos ter. As pessoas querem a parte boa dos dois mundos: serem livres para transar e fazer o que quiserem no mundo horizontal, e sentirem-se valorizadas e seguras no mundo vertical.
E agora, o que fazemos diante deste cenário? Particularmente, penso que a relação sexual não funciona tão bem fora de relacionamentos monogâmicos de longo prazo, principalmente por não levar em consideração a intimidade. Não acredito que consigamos separar sexo de intimidade — tanto emocionalmente quanto psicologicamente — sem deixar feridas expostas. E isto fica nítido em nosso mundo horizontal. A modernidade diz: “Vão lá, transem muito. Toda forma de expressão sexual é permitida, pois sexo é bom.” No outro dia alguém se sente usado e arrependido. E uma das coisas que têm acontecido com frequência nos movimentos radicais de anti-abuso sexual é a ideia de que se você faz sexo com alguém e então se arrepende no dia seguinte, isto evidencia que não foi consensual. Ficou claro que este ato não fora pensado no dia anterior. O indivíduo apenas seguiu sua natureza. “Foi bom ontem à noite, mas agora, pela manhã…”
Nós invertemos os polos da intimidade. Hoje, sexo não é intimidade para a maior parte das pessoas. Transamos com quem quer que seja como se déssemos “bom dia” para qualquer desconhecido. Entretanto, após o gozo sem intimidade, o que resta é o pudor. Grande parte das vezes, há até uma repulsa entre os amantes, que buscam separar-se imediatamente após a descarga da pulsão sexual, pois não possuem mais nada a oferecer um para o outro. A única coisa que os uniu agora não existe mais, esvaiu-se pelo gozo. Quem já passou por esta experiência, sabe exatamente do que estou falando: aquele sentimento de arrependimento, de vazio existencial, de insegurança perante um desconhecido.
Perceba que um menear de mãos em direção a uma sorveteria é considerado mais íntimo do que simplesmente uma trepada dentro de um quarto escuro entre dois desconhecidos. No mundo vertical era o oposto: primeiro você levaria a dama para tomar um sorvete, conquistaria sua intimidade ao longo do tempo e, após o casamento, ambos experimentariam o máximo da intimidade entre dois seres humanos: o sexo. “Então você sugere que voltemos para o mundo vertical?” Não! Mas preciso esclarecer alguns pontos: o desejo é fácil, é promíscuo e capaz de destruir a vida de pessoas incautas que se aventuram de forma irresponsável pelos meandros da luxúria. Talvez por isso mesmo, havia aquele freio do mundo vertical cuja regra geral era “sexo só depois do casamento”. Qual é a regra agora? “Não há regras! Regras são opressoras!” Me responderiam os jovens revolucionários. Creio que se Freud pudesse dar sua opinião sobre a nossa modernidade líquida, diria que nunca antes se viveu uma época tão infantil e histérica, onde os indivíduos acreditam piamente que podem realizar todas suas fantasias e desejos e, ao mesmo tempo, se manterem saudáveis, pois no alto de suas arrogâncias, a natureza humana pode ser moldada aos seu prazeres.
Concluo que tanto a repressão irrestrita quanto a liberdade irrestrita são problemáticas à vida sexual cotidiana. Se deixarmos o Id (instância psíquica responsável por nossos impulsos) ser quem ele é, provavelmente nos tornaremos niilistas/hedonistas em direção a uma vida vazia e sem significado algum; se deixarmos o Superego (instância psíquica responsável pelas regras morais e sociais) ser quem ele é, provavelmente acabaremos frígidos, histéricos e invejosos. Há de se achar um equilíbrio entre estes dois polos. O Ego que se vire para harmonizar estas feras.
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