Na minha infância, sempre fui um cagão contumaz. Desde cumprimentar os transeuntes até arriscar um beijo “despretensioso” nos lábios de Luísa — esta crônica está no Ninguém Deveria Envelhecer Sozinho. Mas não era só isso! Eu tinha um medo absurdo de apanhar. Pouquíssimas foram as vezes que ouvi a frase espectral que ressoava nos corredores de todos os colégios do Brasil: “Te pego na saída!” O “pegar”, aqui, não vinha de uma moça que ansiava por beijar-me os lábios molhados e virgens, mas de um marmanjo cheio de ódio no coração, cuja masculinidade se provava batendo em meninos mais novos. Raramente ouvi tal frase, pois raramente arriscava algo. Eu era o homem do canto, ou seja, não estava no fundão da sala fazendo bagunça e nem com os nerds que sentavam-se na primeira fileira, os quais todos odiavam. Eu gostava dos cantos, das paredes, onde eu não chamasse a atenção. Eis um problema fundamental: eu sempre fui o mais alto da turma. Além disso, eu era virado em cabeça. Tinha cabeça para dar e vender. Daí vem meus primeiros apelidos de infância. Não havia como não chamar a atenção.
Eu estava sempre cuidando para não pisar nos calos de ninguém, pois, como eu disse, meu medo era de apanhar, ser assassinado ou, como diziam algumas mães neuróticas da minha infância, de alguma seita satânica me sequestrar com o objetivo de usar o meu corpinho para rituais de magia negra. O meu objetivo era não feder e nem cheirar, mas acabava sempre fedendo. Por mais que eu fosse um cagão na maior parte do tempo, vez ou outra eu corria riscos, mas, como um bom melancólico, eram riscos calculados. Lembro-me de que muitas das surras das quais presenciei, eram por causa de garotas. Por isso mesmo, na adolescência, sempre tomei cuidado ao me relacionar com as escassas garotas que ousavam me dar uma moralzinha. E hoje, meu querido leitor, quero lhe contar um episódio que escapei da morte, escapei de um lutador de Kung Fu que, segundo ele, sabia quebrar pescoço.
Lá estava eu, numa balada, ao som de MC Leozinho, bebendo whiskey com Coca-Cola. Eu precisava me entorpecer para que aquela mistura de escuridão, música ruim, playboys de saveiro e mulheres de boné, ficasse divertida. Já falei aqui que balada é a dança do acasalamento moderno, né? Mas eis o que eu queria dizer. Lá pelas tantas, enquanto tocava ao fundo “ela só pensa em beijar… beijar, beijar, beijar… vem comigo dançar… dançar, dançar, dançar”, eis que uma garota me puxa e diz no meu ouvido: “Minha amiga quer ficar contigo!” Aquilo, num primeiro momento, soou como um milagre. Segundos depois a minha razão destruiu o meu milagre: “Ela deve ser feia pra cacete! É óbvio!” E mais uma vez a razão deu conta de se corrigir: “Mas eu sou feio pra cacete também! Dane-se!” E lá fui eu em direção à desesperada que almejava ficar comigo. Assim que a avistei em meio àquela combinação de escuridão, luzes fluorescentes piscantes e gente que não acabava mais, concluí: “É um milagre!” A garota era linda. Era pequenina, de cabelos escuros e cacheados, olhos azulíssimos, mas não eram de cigana oblíqua e dissimulada, e sim de uma predadora reta e objetiva.
Não perdi tempo. Antes que ela pudesse dizer “oi”, a agarrei. Enquanto a beijava, pensava: “Já posso morrer.” Ora, eu estava diante de um milagre. Mas mal sabia eu que este pensamento, dali a alguns minutos, poderia ter se tornado parte da realidade. Explico: após beijá-la por alguns minutos, percebi que meu whisky com coca havia acabado. Resolvi buscar mais. No caminho, me atentei a alguém que parecia me seguir. Peguei meu whiskey e voltei para a morena. Na volta, a mesma coisa. Desconfiado, olhei para trás e vi uma criatura estranha me seguindo. Cheguei na morena e relatei o ocorrido. Ela passou a mão na testa e resmungou algo inaudível. Ali eu confirmei: “Tem coisa aí!” Ela simplesmente disse: “Eu só ficava com ele, mas não o quero mais na minha vida. Ele é maluco!” Congelei. Por alguns segundos vi a morte. Só Deus sabe o que um homem ressentido por um amor não correspondido é capaz de fazer. Muitos já mataram e morreram por uma mulher. Até o homem mais santo e correto é capaz de se tornar um homicida sanguinário ao ter o coração estraçalhado por uma semideusa. Li muito Nelson Rodrigues. Sei do que estou falando.
Covarde que eu era, me afastei da morena dizendo: “Já volto!” Assim que comecei a caminhar senti uma cutucada no meu ombro. Continuei sem olhar pra trás. Mais uma vez a cutucada, mas agora com uma ordem: “Ei, preciso falar contigo!” Ao virar, deparei-me com um homem estranho, daqueles que se vestem de preto, da cabeça aos pés, usam aquelas calças com correntes, camisetas de bandas de Black Metal, tênis All Star e possuem aqueles olhos cujo olhar é possível concluir o óbvio: “Este homem está prestes a cometer um massacre em alguma escola.”
Leitor, pense no ódio deste rapaz. Ele foi capaz de pagar para entrar numa balada. É a mesma coisa que Beethoven pagar para ir a um baile funk. É claro que aquele homem do subsolo não estava bem. Sua ficante o descartou e o infeliz resolveu ir atrás dela. Ele, que já vivia uma vida na solidão, se sentiu ainda mais solitário. Eu o conhecia de vista. Sabia que era um dos melhores lutadores de Kung Fu da cidade, pois na época, após desistir da capoeira, entrei para o Kung Fu e o avistei, algumas vezes, no lago São Bernardo, praticando a arte com alguns amigos tão estranhos quanto ele. Então, ao me virar e tomar consciência de quem era, aceitei a realidade: “Me ferrei!” Ele foi logo dizendo, com as mãos nos bolsos: “Aquela garota é minha. A gente está passando por um momento complicado, mas não vou admitir que nenhum homem a deflore.” Eu comprimi os lábios e disse: “Deve ser triste, né?!” Ele franziu o cenho, como se não entendesse a minha resposta. Em seguida, ainda com as mãos nos bolsos — as mãos nos bolsos me intrigaram —, com um olhar repleto de ressentimento, me tacou na cara sua proposta fulminante, como se fosse um chefe da Yakusa!
“Vou te dar três opções! Primeira: olhar pra ela e fingir que não a vê; segunda: hospital; terceira: cemitério.” E concluiu com a frase espectral: “E eu sei quebrar pescoço!” Fiquei em silêncio por alguns segundos, olhando para o chão. A minha resposta veio com uma pergunta e um tom de admiração teatral: “Quem é teu mestre?” No Kung Fu existe a figura do mestre, que nada mais é do que o professor. Ele ficou desconcertado, pois nunca esperaria uma resposta destas. Imagine aí, leitor. Alguém vem até você espumando de raiva e ressentimento, com o desejo sombrio de destruí-lo, mas então você simplesmente, em vez de fugir ou partir para a agressão — que seria o esperado —, oferece um abraço. Quando o garoto respondeu quem era o seu mestre, até seu semblante mudou. Ele me enxergou como alguém mais “humano”, ou seja, alguém mais próximo. Pronto! Ali eu percebi que tinha ganhado ele. Passamos a conversar sobre Kung Fu. E eu sempre enaltecendo sua qualidade monumental de saber quebrar pescoços alheios por aí. Aquele garoto só queria atenção. Bem, se ele sabia quebrar pescoços, eu sabia quebrar raiva e ressentimento. E, pensando cá com meus botões, não é à toa que hoje sou terapeuta. Naquela época eu já mostrava os sinais.
Acho que este talento vem de família. Tenho um primo que certa vez, ao sairmos numa noite para beber em frente a um posto de gasolina, conseguiu fazer um marginal que esfaqueava pessoas alheias por aí, chorar. Fascinante! É verdade: este homem tinha este histórico de esfaquear pessoas na cidade. Eu vi esta cena: um Caim chegando cheio de ódio em direção a nós; e por que o ódio? Em resumo: porque nascemos em famílias amorosas, e ele não. Sua vontade era destruir isso, como descrevi numa crônica antiga, intitulada Morte à Burguesia. E pasmem: após algumas horas, ele foi embora abraçando todos nós. Milagre! O paroxismo desta história foi quando vi este Caim, que em vez de destruir seus irmãos, acabou chorando e se desculpando com todos que estavam ali, mas principalmente com o meu primo, que o abraçava enquanto ele chorava.
Agora estou aqui pensando numa moral da história e, o que vem à minha consciência é o que você, meu leitor, já está cansado de saber: só o amor vai nos salvar. Estes homens só queriam amor, ansiavam por amor. É claro que muitos se afundam tanto em ódio e ressentimento que, muitas vezes, passa a ser quase impossível resgatá-los. Eu disse “quase”, mas não é impossível. Ora, para Deus nada é impossível. No fim, eu e o garoto que sabia quebrar pescoço combinamos até de treinar juntos. Quem saiu perdendo, aquela noite, foi a morena. Ora, também não vou ficar dando chances para o azar.